Obrigado, Perdão Ajuda-me

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As minhas capacidades estão fortemente diminuídas com lapsos de memória e confusão mental. Esta é certamente a vontade do Senhor a Quem eu tudo ofereço. A vós que me leiam rogo orações por todos e por tudo o que eu amo. Bem-haja!

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Meditação do Santo Padre por ocasião do Jubileu dos Sacerdotes e Seminaristas

III meditação: o bom odor de Cristo e a luz da sua Misericórdia

No nosso terceiro encontro, proponho-vos meditar sobre as obras de misericórdia, quer debruçando-vos sobre uma delas – a que sentirmos mais relacionada com o nosso carisma – quer contemplando-as todas juntas, vendo-as com os olhos misericordiosos de Nossa Senhora, que nos fazem descobrir «o vinho que falta» e nos anima a «fazer tudo o que Jesus nos disser» (cf. Jo 2, 1-12) para que a sua misericórdia realize os milagres de que necessita o nosso povo.

As obras de misericórdia estão muito ligadas aos «sentidos espirituais». Rezando, peçamos a graça de «sentir e saborear» de tal modo o Evangelho que nos sensibilize para a vida. Movidos pelo Espírito, guiados por Jesus, podemos ver já de longe, com olhos de misericórdia, a pessoa que está caída ao lado da estrada, podemos ouvir os gritos de Bartimeu, podemos perceber como sente o Senhor na franja do seu manto o toque tímido mas decidido da hemorroíssa, podemos pedir a graça de saborear com Ele na cruz o gosto amargo do fel de todos os crucificados, para deste modo sentir o odor forte da miséria – em hospitais de campanha, em comboios e em barcaças repletas de pessoas –; odor que embora o óleo da misericórdia não cubra todavia, ao ungi-lo, faz com que se desperte uma esperança.

Ao falar das obras de misericórdia, o Catecismo da Igreja Católica conta que Santa Rosa de Lima, «no dia em que a sua mãe a repreendeu por manter em sua casa pobres e doentes, respondeu-lhe: “Quando servimos os pobres e os doentes, é a Jesus que servimos”» (n. 2449). Servindo-os, somos o bom odor de Cristo. Este bom odor de Cristo – o cuidado dos pobres – é distintivo da Igreja; sempre o foi. Foi aqui que Paulo centrou o seu encontro com «as colunas» – como lhes chama –, com Pedro, Tiago e João. «Só nos disseram que nos devíamos lembrar dos pobres» (Gl 2, 10). E, sugestivamente, o Catecismo diz também que «os que se sentem acabrunhados pela miséria são objeto de um amor preferencial por parte da Igreja, que desde o princípio, apesar das falhas de muitos dos seus membros, nunca deixou de trabalhar por aliviá-los, defendê-los e libertá-los» (n. 2448).

Na Igreja tivemos, e temos, tantas coisas não muito boas, e muitos pecados, mas nisto de servir os pobres com obras de misericórdia, como Igreja sempre seguimos o Espírito, tendo-o feito os nossos Santos de maneira muito criativa e eficaz. O amor pelos pobres é o sinal, a luz que faz com que as pessoas glorifiquem o Pai. É isto que o nosso povo aprecia no padre: se cuida dos pobres, dos doentes, se perdoa os pecadores, ensina e corrige com paciência... O nosso povo perdoa muitos defeitos nos padres, exceto o de serem agarrados ao dinheiro. E não é tanto pela riqueza em si, mas porque o dinheiro nos faz perder a riqueza da misericórdia. O nosso povo pressente os pecados que são graves para o pastor, que matam o seu ministério porque o transformam num funcionário ou, pior, num mercenário, e, diversamente, os pecados que são, não diria secundários, mas possíveis de suportar, carregar como uma cruz, até que o Senhor finalmente os purifique, como fará com a cizânia. Ao contrário, o que atenta contra a misericórdia é uma contradição principal: atenta contra o dinamismo da salvação, contra Cristo que «Se fez pobre para nos enriquecer com a sua pobreza» (cf. 2 Cor 8, 9). Sucede isto, porque a misericórdia cura à custa de «perder algo de si mesma»: um retalho do coração fica com o ferido, perdemos um momento da nossa vida quando o damos a outrem, em vez de o ocuparmos naquilo que nos apetecia fazer.

Por isso, não se trata de Deus ter misericórdia de mim numa falta ou noutra como se, no resto, eu fosse autossuficiente, nem se trata de realizar, de vez em quando, algum ato especial de misericórdia com uma pessoa necessitada. A graça que pedimos, nesta oração, é a de nos deixarmos «misericordiar» por Deus em todos os aspetos da nossa vida e sermos misericordiosos com os outros em toda a nossa atividade. Para nós, padres e bispos, que trabalhamos com os Sacramentos batizando, confessando, celebrando a Eucaristia... a misericórdia é o modo de transformar toda a vida do povo de Deus em sacramento. Ser misericordioso não é apenas um «modo de ser», mas «o modo de ser». Não há outra possibilidade de ser sacerdote. O Cura Brochero, que será canonizado este ano, se Deus quiser, dizia: «O sacerdote que não sente muita compaixão pelos pecadores, é um meio-sacerdote. O que me faz sacerdote não são estes trapos abençoados de que estou revestido; se não levo no meu peito a caridade, nem a cristão chego».

Ver o que falta para lhe pôr imediatamente remédio, e melhor ainda prevê-lo, é próprio do olhar dum pai. Este olhar sacerdotal – daquele que faz as vezes do pai no seio da Igreja Mãe –, que nos leva a ver as pessoas na ótica da misericórdia, é o que se deve ensinar e cultivar desde o Seminário e deve alimentar todos os planos pastorais. Desejemos e peçamos ao Senhor um olhar que aprenda a discernir os sinais dos tempos na perspetiva das obras de misericórdia de que hoje têm necessidade os nossos povos, para poderem sentir e saborear o Deus da história que caminha no meio deles. Porque, como diz o Documento de Aparecida citando Santo Alberto Hurtado: «Pelas nossas obras, o nosso povo sabe se compreendemos a sua dor» (n. 386); pelas nossas obras...

A prova desta compreensão do nosso povo é que, nas nossas obras de misericórdia, sempre somos abençoados por Deus e encontramos ajuda e colaboração no nosso povo. Não se verifica o mesmo com outro género de projetos, que umas vezes avançam e outras não, e alguns não se dão conta do motivo por que não funcionam e cansam a cabeça à procura de mais um novo plano pastoral, quando se poderia dizer simplesmente: não funciona porque lhe falta misericórdia, sem necessidade de entrar em detalhes. Se não é abençoado, é porque lhe falta misericórdia. Falta aquela misericórdia que tem a ver mais com um hospital de campanha do que com uma clínica de luxo; aquela misericórdia que, apreciando algo de bom, prepara o terreno para um futuro encontro da pessoa com Deus, em vez de a afastar com uma crítica patente...

Proponho-vos uma oração com a pecadora perdoada (cf. Jo 8, 3-11), para pedir a graça de ser misericordiosos na Confissão, e outra sobre a dimensão social das obras de misericórdia.

Sempre me comove o episódio do Senhor com a mulher adúltera, ao pensar que, não a condenando, o Senhor «faltou» à lei; naquele preciso momento em que Lhe pediam para Se pronunciar – «devemos apedrejá-la ou não?» – não Se pronunciou, não aplicou a lei. Fez-Se despercebido e, naquele momento, saiu-lhes com outra coisa. Assim começou um processo no coração da mulher, que tinha necessidade destas palavras: «Nem Eu te condeno». Estendendo-lhe a mão, levantou-a; isto permitiu-lhe encontrar-se com um olhar cheio de doçura, que mudou o seu coração. Às vezes sinto um misto de pena e indignação, quando alguém se apressa a evidenciar a última recomendação: «não peques mais»; e usa esta frase para «defender» Jesus, para que não apareça como alguém que saltou por cima da lei. Penso que as palavras usadas pelo Senhor formam um todo com as suas ações. O facto de Se inclinar a escrever no chão por duas vezes, criando uma pausa antes do que disse a quantos queriam apedrejar a mulher e, em seguida, antes daquilo que disse a ela, aponta para um tempo que o Senhor Se reserva antes de julgar e perdoar; um tempo que remete cada um para a sua interioridade e faz com que aqueles que julgam se retirem.

No seu diálogo com a mulher, o Senhor abre outros espaços: um é o espaço da não condenação. O Evangelho insiste neste espaço que ficou livre. Situa-nos na perspetiva de Jesus e diz-nos que «em redor não vê ninguém, a não ser a mulher». E, em seguida, o próprio Jesus faz a mulher olhar ao seu redor, com esta pergunta: «Onde estão os que te classificavam (palavra importante, porque fala de algo que decididamente rejeitamos, ou seja, que nos rotulem ou caricaturem)»? Depois de a fazer olhar aquele espaço livre do juízo alheio, diz-lhe que nem Ele o invade com as suas pedras: «Nem Eu te condeno». E, naquele preciso momento, abre-lhe outro espaço livre: «Doravante não peques mais». O mandamento é dado para o futuro, para ajudar a caminhar, para «caminhar no amor». Esta é a delicadeza da misericórdia, que olha com piedade o passado e encoraja para o futuro. Este «não peques mais» não é uma coisa óbvia. O Senhor di-lo «juntamente com ela», ajuda-a a expressar em palavras o que ela própria sente: um «não» dito livremente ao pecado, que é como o «sim» de Maria à graça. O «não» deve ser dito em relação à raiz do pecado de cada um. Na mulher, tratava-se dum pecado social, do pecado duma pessoa de quem outros se aproximavam ou para dormir com ela ou para a apedrejar. Por isso o Senhor não só lhe desimpede o caminho, mas põe-na a caminhar, para que deixe de ser «objeto» do olhar alheio e passe a ser protagonista. O «não pecar» não se refere apenas ao aspeto moral – creio eu –, mas a um tipo de pecado que a impede de realizar a sua vida. Ao paralítico da piscina de Betzatá, Jesus também lhe diz «não peques mais» (Jo 5, 14); mas a este – que se justificava com as coisas tristes que lhe aconteciam, que tinha uma psicologia de vítima – espicaça-o um pouco com as palavras «para que não te aconteça coisa ainda pior». O Senhor aproveita a maneira de pensar dele, aquilo que teme, para fazê-lo sair da sua paralisia. Digamos que o estimula com o susto. Assim, cada um tem que ouvir este «não peques mais» de forma íntima, pessoal.

Esta imagem do Senhor que põe as pessoas a caminhar é muito apropriada: Ele é o Deus que Se põe a caminho com o seu povo, que faz avançar e acompanha a nossa história. Por isso, o objeto que visa a misericórdia é muito concreto: tem em vista aquilo que impede um homem ou uma mulher de caminharem no seu lugar, com os seus queridos, ao seu ritmo, para a meta aonde Deus os convida. O que faz pena, o que comove é que uma pessoa se perca, ou que fique para trás, ou que erre por presunção. Que esteja – digamos – fora do seu lugar; que não esteja à disposição do Senhor, disponível para a tarefa que Ele quiser confiar-lhe; que uma pessoa não caminhe humildemente na presença do Senhor (cf. Miq 6, 8), que não caminhe na caridade (cf. Ef 5, 2).

O espaço do confessionário, onde a verdade nos faz livres

E, falando de espaço, vamos ao do confessionário. O Catecismo da Igreja Católica apresenta-nos o confessionário como um lugar onde a verdade nos torna livres para um encontro: «Ao celebrar o sacramento da Penitência, o sacerdote exerce o ministério do Bom Pastor que procura a ovelha perdida; do bom Samaritano que cura as feridas; do Pai que espera pelo filho pródigo e o acolhe no seu regresso; do justo juiz que não faz aceção de pessoas e cujo juízo é, ao mesmo tempo, justo e misericordioso. Em resumo, o sacerdote é sinal e instrumento do amor misericordioso de Deus para com o pecador» (n. 1465). E lembra-nos que «o confessor não é dono, mas servidor do perdão de Deus. O ministro deste sacramento deve unir-se à intenção e à caridade de Cristo» (n. 1466).

Sinal e instrumento de um encontro. Eis o que somos: atração eficaz para um encontro. Sinal quer dizer que devemos atrair, como quando uma pessoa faz sinais para chamar a atenção. Um sinal deve ser coerente e claro, mas sobretudo compreensível. Com efeito, há sinais que são claros só para os especialistas. Sinal e instrumento. O instrumento vale pela sua eficácia, por estar ao alcance e incidir na realidade de forma concreta, adequada. Somos instrumentos, se verdadeiramente as pessoas se encontrarem com Deus misericordioso; a nós cabe «fazer com que se encontrem», que fiquem face a face. O que fizerem depois é lá com eles. Temos um filho pródigo na pocilga e um pai que todas as tardes sobe ao terraço para ver se ele chega; temos uma ovelha perdida e um pastor que saiu à sua procura; temos um ferido caído ao lado da estrada e um samaritano que tem bom coração. Então qual é o nosso ministério? Ser sinal e instrumento para que eles se encontrem. Fique claro que não somos o pai, nem o pastor, nem o samaritano. Antes, como pecadores, estamos do lado dos outros três. O nosso ministério tem de ser sinal e instrumento daquele encontro. Por isso, estamos situados no âmbito do mistério do Espírito Santo, que é quem cria a Igreja, quem faz a unidade, quem reaviva de cada vez o encontro.

Outra coisa própria dum sinal e dum instrumento é – dizendo-a em palavras difíceis – a sua não autorreferencialidade. Ninguém fica no sinal, logo que compreendeu a significação; ninguém fica a olhar para a chave de fendas ou para o martelo, mas olha o quadro se ficou bem fixado. Somos servos inúteis. Por outras palavras, instrumentos e sinais que foram muito úteis para os outros dois que se fundiram num abraço, como o pai com seu filho.

A terceira característica própria do sinal e do instrumento é a sua disponibilidade: que o instrumento esteja pronto para ser usado, que o sinal seja visível. A essência do sinal e do instrumento é serem mediadores. Talvez esteja aqui a chave da nossa missão neste encontro da misericórdia de Deus com o homem. Provavelmente fica mais claro, se usarmos um termo negativo: Santo Inácio falava de «não ser impedimento». Um bom mediador é aquele que facilita as coisas e não coloca impedimentos. Na minha terra, havia um grande confessor, o Padre Cullen, que se sentava no confessionário e fazia duas coisas: uma era remendar bolas de couro para os meninos que jogavam futebol, a outra era ler um grande dicionário de chinês. Dizia ele que, quando o viam ocupado em atividades tão inúteis, como remendar bolas velhas, e sem qualquer urgência, como ler um dicionário de chinês, as pessoas pensavam: «Posso aproximar-me para falar um pouco com este padre, pois vê-se que não tem nada que fazer». Estava disponível para o essencial. Evitava o impedimento de ter o aspeto duma pessoa sempre muito ocupada.

Cada um de nós conheceu bons confessores. Devemos aprender com os nossos bons confessores, com aqueles de quem as pessoas se aproximam, que não as assustam e que sabem falar até o outro contar o que se passa, como Jesus com Nicodemos. Se alguém se aproxima do confessionário é porque está arrependido, já há arrependimento. E, se se aproxima, é porque tem desejo de mudar ou, pelo menos, desejo de desejar, se a situação lhe parece impossível (ad impossibilia nemo tenetur – como diz o «brocardo» – ninguém é obrigado a fazer o impossível).

Devemos aprender com os bons confessores, com aqueles que têm delicadeza com os pecadores bastando-lhes meia palavra para compreenderem tudo, como Jesus com a hemorroíssa, e naquele mesmo momento sai deles a força do perdão. A integridade da confissão não é uma questão de matemática. Às vezes, a vergonha fica-se a dever mais ao número do que ao nome do próprio pecado. Mas, para isso, é preciso deixar-se comover perante a situação das pessoas – às vezes, é uma mistura de coisas, de doença, de pecado e de condicionalismos impossíveis de superar – como Jesus que Se comovia ao ver as pessoas, sentia-o nas entranhas, nas vísceras e, por isso, curava; e curava mesmo que o outro «não lho pedisse» como aquele leproso, ou andasse às voltas como a Samaritana, que era como o pardal: piava num lado, mas tinha o ninho noutro.

Devemos aprender com os confessores capazes de fazer com que o penitente sinta vontade de emenda dando um pequeno passo em frente, como Jesus que dava uma penitência suficiente mas sabia apreciar quem voltava para agradecer, quem fazia mais. Jesus fazia levar o catre ao paralítico, ou fazia-Se rogar um pouco pelos cegos ou pela mulher sirofenícia. Não Se importava se depois não sabiam dizer Quem era, como o paralítico da piscina de Betzatá, ou se alardeavam coisas que lhes ordenara não contar e, por isso, até parecia que o leproso era Ele, porque não podia entrar nas povoações ou os seus inimigos encontravam motivos para O condenar. Curava, perdoava, dava alívio, descanso, fazia as pessoas respirarem uma lufada do Espírito consolador.

Em Buenos Aires, conheci um padre capuchinho – um pouco mais novo do que eu – que é um grande confessor. Diante do confessionário havia sempre uma fila de gente, muitas pessoas, sim, mais e mais pessoas, passava todo o dia a confessar. Ele é um grande perdoador. E perdoa, mas às vezes vêm-lhe escrúpulos de ter perdoado demasiado. E, falando nós uma vez, disse-me: «Às vezes, tenho estes escrúpulos». E perguntei-lhe: «Que fazes, quando tens estes escrúpulos?» – «Vou diante do sacrário, olho para o Senhor e digo-Lhe: “Senhor, perdoai-me! Hoje perdoei muito. Mas fique claro que a culpa é vossa, porque me destes mau exemplo». Melhorava a misericórdia com mais misericórdia.

Por último, neste ponto da Confissão, dois conselhos: O primeiro, nunca adotem o olhar do funcionário, de quem só vê «casos» e livra-se deles. A misericórdia livra-nos de ser um padre juiz-funcionário que, à força – digamos – de tanto julgar «casos», perde a sensibilidade pelas pessoas, pelos rostos. A regra de Jesus é «julgar como queremos ser julgados». Na medida íntima que uma pessoa emprega para julgar se a trataram com dignidade, se a ignoraram ou maltrataram, se a ajudaram a levantar-se..., está a chave para julgar os outros (tenhamos presente que o Senhor confia nesta medida, tão subjetivamente pessoal). E não tanto porque essa medida seja a «melhor», mas porque é sincera e, a partir dela, pode-se construir uma boa relação. O segundo conselho: Não sejais curiosos no confessionário. Conta Santa Teresinha que, quando recebia as confidências das suas noviças, evitava cuidadosamente perguntar como terminaram as coisas. Dominava a curiosidade sobre a alma das pessoas (cf. História de uma alma: Manuscrito C, dirigido à Madre Gonzaga, c. XI, 32vs.). É próprio da misericórdia «cobrir com o seu manto» o pecado para não ferir a dignidade. Como os dois filhos de Noé, que cobriram com o manto a nudez do pai que se embriagara (cf. Gn 9, 23).

A dimensão social das obras de misericórdia

No fim dos Exercícios, Santo Inácio coloca a «contemplação para chegar ao amor», que liga a vivência na oração com a vida quotidiana. E faz-nos refletir que o amor se deve colocar mais nas obras do que nas palavras. Estas obras são as obras de misericórdia, as obras que o Pai «de antemão preparou para nelas caminharmos» (Ef 2, 10), as obras que o Espírito inspira a cada um para o bem comum (cf. 1 Cor 12, 7). Ao mesmo tempo que agradecemos ao Senhor por tantos benefícios recebidos da sua bondade, peçamos a graça de levar a todos os homens esta misericórdia que nos salvou a nós.

Proponho-vos meditar alguns dos parágrafos finais dos Evangelhos. Lá, o próprio Senhor estabelece a conexão entre o que recebemos e o que devemos dar. Podemos ler estas conclusões em chave de «obras de misericórdia» que se realizam no tempo da Igreja em que Jesus ressuscitado vive, acompanha, envia e atrai a nossa liberdade, que encontra nisso a sua realização concreta e renovada em cada dia.

Mateus diz-nos que o Senhor envia os apóstolos com estas palavras: «Ensinai-os a cumprir tudo quanto vos tenho mandado» (28, 20). Este «ensinar a quem ignora» é, em si mesmo, uma das obras de misericórdia. E decompõe-se como a luz nas demais obras: nas referidas em Mateus 25, que têm mais a ver com as obras chamadas corporais, e em todos os mandamentos e conselhos evangélicos de «perdoar», «corrigir fraternalmente», consolar os tristes, suportar as perseguições...

Marcos termina com a imagem do Senhor que «cooperava» com os apóstolos e «confirma a Palavra com os sinais que a acompanhavam». Estes «sinais» têm a caraterística das obras de misericórdia. Marcos fala, entre outras coisas, de curar os doentes e expulsar os espíritos maus (cf. 16, 17-18).

Lucas continua o seu Evangelho com o livro dos «Atos - praxeis - dos Apóstolos», narrando o seu modo de proceder e as obras que realizam, guiados pelo Espírito.

João termina, aludindo a «muitas outras coisas» (21, 25) ou «sinais» (20, 30) que Jesus fez. As ações do Senhor, as suas obras não são meros factos mas sinais em que se manifestam, de forma pessoal e única por cada um, o seu amor e a sua misericórdia.

Podemos contemplar o Senhor, que nos envia a fazer este trabalho, através da imagem de Jesus misericordioso, tal como foi revelada à Irmã Faustina. Naquela imagem, podemos ver a Misericórdia como uma única luz que vem da interioridade de Deus e que, ao passar pelo coração de Cristo, sai diversificada com uma cor própria para cada obra de misericórdia.

As obras de misericórdia são infinitas, cada uma com o seu cunho pessoal, com a história de cada rosto. Não são apenas as sete corporais e as sete espirituais em geral. Ou melhor: estas, assim enumeradas, são como matérias-primas – as da própria vida – que, quando as mãos da misericórdia as tocam e moldam, se transformam, cada uma delas, num trabalho artesanal. Uma obra que se multiplica como o pão nos cestos, que cresce desmedidamente como a semente de mostarda. Com efeito, a misericórdia é fecunda e inclusiva. É verdade que estamos habituados a pensar nas obras de misericórdia uma a uma e enquanto ligadas a uma obra: hospitais para os doentes, sopa dos pobres para os famintos, abrigos para os que vivem pela estrada, escolas para quem precisa de instrução, o confessionário e a direção espiritual para quem necessita de conselho e perdão… Mas, se as olharmos em conjunto, a mensagem que daí resulta é que a misericórdia tem por objeto a própria vida humana na sua totalidade. A nossa própria vida, enquanto «carne», é faminta e sedenta, carecida de vestuário, casa e visitas, bem como de um enterro digno, coisa que ninguém pode fazer para si mesmo. Mesmo o mais rico, ao morrer, fica reduzido a uma miséria e ninguém leva atrás do cortejo fúnebre o camião com a mercadoria da casa mudada. A nossa própria vida, enquanto «espírito», precisa de ser educada, corrigida e encorajada (consolada). Temos necessidade que outros nos aconselhem, perdoem, apoiem e rezem por nós. Na família, praticam-se estas obras de misericórdia de forma tão justa e desinteressada que nem se dá por ela, mas basta que, numa família com crianças pequenas, falte a mãe para que tudo fique na miséria. A miséria mais absoluta e cruel é a duma criança na rua, sem pais, à mercê dos abutres.

Pedimos a graça de ser sinal e instrumento; agora trata-se de «agir», e não apenas de ter gestos, mas de fazer obras, institucionalizar, criar uma cultura da misericórdia. Lançando mãos ao trabalho, sentimos imediatamente que é o Espírito quem mobiliza e faz avançar estas obras. E fá-lo utilizando os sinais e instrumentos que deseja, embora às vezes não «sejam» em si mesmos os mais aptos. Mais ainda: dir-se-ia que, para exercer as obras de misericórdia, o Espírito prefira os instrumentos mais pobres, os mais humildes e insignificantes, sendo eles mesmos os mais necessitados desse primeiro raio da misericórdia divina. Estes são aqueles que melhor se deixam formar e preparar para realizar um serviço de verdadeira eficácia e qualidade. A alegria de se sentir «servos inúteis», a quem o Senhor abençoa com a fecundidade da sua graça e que Ele próprio faz sentar à sua mesa e nos serve a Eucaristia, é uma confirmação de que estamos a trabalhar nas suas obras de misericórdia.

O nosso povo fiel gosta de congregar-se à volta das obras de misericórdia. Tanto nas celebrações – penitenciais e festivas – como na ação solidária e formadora, o nosso povo deixa-se convocar e conduzir e de uma forma que nem todos se dão conta e valorizam, apesar de falharem muitos outros planos pastorais centrados em dinâmicas mais abstratas. A presença maciça do nosso povo fiel nos nossos santuários e peregrinações, uma presença anónima – só anónima por excesso de rostos e pelo desejo de fazer-se ver apenas por Aquele e Aquela que os olham com misericórdia –, bem como a colaboração também numerosa que, sustentando com o seu trabalho tantas obras solidárias, deve ser motivo de atenção, apreço e promoção da nossa parte.

Como sacerdotes, peçamos duas graças ao Bom Pastor: a de nos deixarmos guiar pelo sensus fidei do nosso povo fiel e também pelo seu «sentido do pobre». Ambos os «sentidos» estão ligados com o seu «sensus Christi», com o amor e a fé que o nosso povo tem por Jesus.

Terminemos rezando Alma de Cristo, que é uma boa oração para pedir misericórdia ao Senhor que veio encarnado, que nos «misericordia» com o seu próprio Corpo e Alma. Peçamos-Lhe que nos «misericordie» juntamente com o seu povo: à sua alma, pedimos «santificai-nos»; ao seu corpo, suplicamos «salvai-nos»; ao seu sangue, rogamos «inebriai-nos», tirai-nos qualquer outra sede que não seja de Vós; à água do seu lado, pedimos «lavai-nos»; à sua paixão, rogamos «confortai-nos», consolai o vosso povo, ó Senhor crucificado; nas vossas chagas – suplicamo-Vos –, escondei-nos»... Não permitais, Senhor, que o vosso povo se separe de Vós. Que nada e ninguém nos separe da vossa misericórdia; defendei-nos das ciladas do inimigo maligno. Assim poderemos cantar as misericórdias do Senhor juntamente com todos os vossos Santos, quando nos mandardes ir para Vós.

O Evangelho do dia 2 de junho de 2016

Então aproximou-se um dos escribas, que os tinha ouvido discutir. Vendo que Jesus lhes tinha respondido bem, perguntou-Lhe: «Qual é o primeiro de todos os mandamentos?». Jesus respondeu-lhe: «O primeiro de todos os mandamentos é este: “Ouve, Israel! O Senhor nosso Deus é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças”. O segundo é este: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Não há outro mandamento maior do que estes». Então o esriba disse-Lhe: «Mestre, disseste bem e com verdade que Deus é um só, e que não há outro fora d'Ele; e que amá-l'O com todo o coração, com todo o entendimento, com toda a alma, e com todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, vale mais que todos os holocaustos e sacrifícios». Vendo Jesus que tinha respondido sabiamente, disse-lhe: «Não estás longe do reino de Deus». Desde então ninguém mais ousava interrogá-l'O.

Mc 12, 28-34